Tela

No canto do quarto chora, olhos de vidro, olha em frente sem perder da mente que o branco omnipresente do espaço quadrado que forma a tela tem apenas um pequeno ponto negro, minúsculo diria dois milímetros ponta de caneta, ponta de iceberg.

Ah tanto para pintar, desenhar, escrever, imagina só se cada um desses sentimentos que remoinham dentro da cabeça fossem golpes de arte, de técnica, se formassem em geometrias abstractas, faces, membros, flores, jardins, se tudo isso fosse assim tão claro.

Claro que sim, que é, mas no entanto ela parada em êxtase de apatia o climax de não ser nada e querer imediatamente ser tudo, que o amor fosse um circulo, a morte um quadrado, a dor, a dor...

Bolas nem eu que aqui parado a pairar sobre o que na minha imaginação ferve, eu que denomino-me como alguém dono de algumas palavras que empresto aos outros consigo perceber, agarrar, morder, provar e descrever a miséria de sentir a katana que subtilmente nos quebra pele de dentro para fora e mesmo que tivesse essa descrição tão límpida e desempenada na minha cabeça algo me provoca nojo no definir eternamente algo desta magnitude, iria generalizar, ser um dicionário tão kitsch e inútil que poderia desistir de cadernos, folhas, guardanapos em conjunção com a caneta, mas o que digo tornaria a sua missão mais confusa e árdua.

O mundo desaba ao seu redor, o seu mundo isto dito, tenho a certeza que algures no mundo um músico dedilha emoção no mais puro esgalhanço de guitarra, um poeta entra em espiral de auto-comiseração e esgravata o verso apelidado morte, e um actor olha esse apelido nos olhos engole em seco e saca da cartola a mais perfeita interpretação de macbeth, tenho a certeza que tu, ai entrelaçada sobre ti, cabeça sobre os joelhos, ai nesse canto poeirento, procuras não por respostas mas por gestos imagens, compões toda essa torrente de sentimentos dentro da tua cabeça, visualizas não analisas, procuras os contornos certos.

O horror que tão próximo te tocou o rosto do merdas que levou quem amavas, a alma dessa pessoa que contorno tem?

É um sorriso para mais tarde recordar? Não, não para isso tens fotos, quais são os contornos de um coração que agora inerte não te chama mais, um corpo que deixa de crescer, amar, falar, gostar, imaginar, pensar e te acompanhar, o egoísmo que te percorre o ego atormentado por tudo o que ficou por dizer, tudo o que resta está à tua frente, homenagem, tem que ficar perfeito.

Pega, vamos, pega, é um simples lápis, eu sei começa simples, traceja o horizonte, o sol, e algumas nuvens, tenho a certeza que nem tudo foi sempre céu azul entre vocês, pega este pincel, e com cada linha um detalhe dos seu corpo, o vestido que adorava, flores e tudo, cores vibrantes.

Toma limpa o rímel horrível que te escorre na cara, e desenha-te a ti, exactamente com isso, com lágrimas e pintura facial, porque não, o toque de ironia, certamente melhor preito não lhe poderias dar, envolve-te nos seus braços vagamente como se fosses tu que tivesses desaparecido, como se ela ainda cá estivesse, e por boa dose um balão de pensamento, eu sei eu sei, é um quadro é suposto ser para interpretação e não ter explicação, mas que se foda o quadro é teu, e escreve simplesmente amo-te.

Agora sim chora, chora muito, fixa a imagem na tua cabeça, pega no isqueiro e queima esse quadrado, queima mesmo.

Tu sabes, eu sei, todos nós sabemos que tal como o quadro nada dura para sempre, facto da vida, isto não é uma lição de vida, não é filosofia de bolso ou mordomia de escape, isto é o que ficou por fazer, isto é o que ficou por dizer, isto é o ultimo capitulo, isto é o teu mundo mais pequeno simplesmente sem nada por dizer, sem nada por fazer, não é o discurso do filme, nem o choro de carpideira, é a tua mensagem enviada e entregue ao vazio onde ela agora mora, gravada, profundamente no núcleo do que és, o bloco de cimento na tua estrutura, vive, vive muito, e quando voltares a sorrir lembra-te, lembra-te dessa imagem, respira fundo, e continua a sorrir.

Ser feliz não é desrespeitar, ser feliz é amar essa memória, é beijar na cara a história e ter o prazer de recordar.

Agora chora até não poderes mais, porque quem não chora são os anormais....

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