Transições

O velho - Uma nota, só, na pauta não é musica tal qual uma gota não é oceano.

A razão assim prontinha o diz, bem engomadinha a racionalidade é o fraque do que é social o hábito aprumado do ansião a quem o tempo não mais preocupa, a fumar o seu cachimbo no cadeirão em pose pensada e aperfeiçoada ao longo de décadas, presunção de pensar que teria sido tudo num mero acaso, realidade é que esperava por tal situação, ao que o próximo gesto foi forçado, pensado e triturado pela massa encefálica, actor amador que ele é, um pito curvado de mogno e ouro que retirado da boca e apontando para o petiz irritado pela razão que suprema reina sobre o discurso do idoso.

O jovem - A razão que fala também diz que fumar mata, apreguar sem praticar é um desprazer auditivo e moralmente condenável.
O velho - Rapaz, rapaz, vieste até mim em busca de respostas não podes me culpar a mim se na realidade não era o que esperavas, quanto a mim não queres respostas, já as tens, o que procuras exactamente é aprovação.

E recosta-se numa posição de maior conforto pois a artrite estava a pesar sobre as suas costas que em soma com a cruz de uma vida lhe causam dores espontâneas e ensurdecedoras.

O jovem - Porque me daria eu então ao trabalho de aqui vir à procura de algo que sempre tive?
O velho - Negação, uma simples palavra, essa tarefa que te forças-te a praticar é uma coação desse mesmo sentimento, esse feeling se for mais palavra para os teus pastos.
A gaiola que prende a forma vulgar de não se ser ninguém mas querer ser tudo, é gradeada por esse irritante alarme, a negação é o mais puro fruto da aceitação, negamos o que somos na esperança que os outros aceitem o que não somos, mas se mentir-mos o suficiente a nós próprios tornamo-nos exactamente assim.
O jovem - Porque quereria eu a sua aceitação, "old man".
O velho - Chama-lhe dever antropológico ou mesmo social, quem sabe? Milhões de anos dizem-nos que nós "oldies" são quem se deve consultar para aquela decisão que nos tira o sono.
O jovem - Mas...
O velho - Não há mas, e acredita em mim, nem meio mas, deixa-me que te diga algo mais, lamentavelmente aquilo que sou ou que represento é altamente ultrapassado, mas não elimina estes anos todos de ouvidos bem abertos e olhos esbugalhados e observadores. Vocês jovens acabam por ser a minha televisão, rádio e revista, novelo enjeitado de novela, o meu passado e o nosso futuro, mudam os tempos mas não as vontades, essas são camaleões mascaram o nome mas são as mesmas ilusões.
O jovem - Eu não estou iludido, vou mesmo fazê-lo.
O velho - Faz, só tu podes ser o teu próprio dono não eu nem a tua mãe, tudo o que fiz foi pesar essa decisão, expandir a sua magnitude, pois conforme pender a tua decisão as réplicas serão imensas e devastadoras, e após esta conversa a mim só me irás desiludir se fores um cobarde e escolheres apenas por facilitismo sem nunca dormir e sonhar sobre o assunto.

O jovem assim o faz. E adulto se torna, o seu nariz tem novo dono, novo timoneiro, o mar é bravo mas de bravura se enche o peito, remédio escasso para as dores.

O adulto  - Sabes velhote não é com arrependimento que digo isto, mas tinhas razão, o peso é enorme, as milhares de possibilidades serpenteiam a minha mente como prostitutas as ruas, oferecem o mundo sem nunca mo garantirem, mas esta é a tua neta - e levanta o bebé na direcção dos céus - não a conheces-te mas ela vai-te conhecer a ti quando eu for velho, talvez sem o cachimbo que péssimo hábito, porque na terra também és vida, vida que faz crescer, esta semente é forte vem de raiz de embondeiro, esta semente é minha como eu fui tua primeiro.

O jovem agora adulto olha o céu e molha a terra, a lágrima é rio no rosto, a lágrima é dor no peito, olha para a filha olhos de vidro mas um sorriso por inteiro, com 6 meses apenas mas à 9 sem avô, a lage corta o chão como a ferida que nele não sarou, vida nova parece destino assim tinha que acontecer um sacrifício enorme para uma nova vida nascer. Na barriga de sua mãe o avô dedicou e lhe umas palavras, ” não fico cá mais tempo para me dares uma alegria, queria te ver nascer mas que não me vejas morrer, por isso é melhor assim, as palavras já me fogem, grãos de areia nos meus dedos, quero que saibas que sou velho e tolo, casmurro e irritante, serei o teu anjo da guarda e nunca estarei distante, e que a vida é, enfim, desconcertante, mesmo no fim o amor brota em mim, este sentimento abafa a dor e por isso morro feliz, amo-te."

E o velho que morre é vida, vida é brilhante. De bebé cresce o jovem, jovem a adulto transição para acabarmos à mesma sentados a conversar num cadeirão.

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